Isabel e Marisa: a força de duas gerações de mães

Catadora de materiais recicláveis há dez anos, Isabel é mãe de oito e avó de mais oito; juntas, ela e a filha sustentam casa com 11 pessoas

Marisa, Isabel e metade dos netos (Foto: Laila Braghero/O Semanário)

Marisa, Isabel e metade dos netos (Foto: Laila Braghero/O Semanário)

Isabel de Camargo Gaion tem 62 anos e recolhe reciclagem há dez. Mãe da auxiliar de produção Marisa de Fátima Gaion, 36, e de mais sete, divide uma pequena casa com a filha e oito netos, no bairro Engenho Velho, além do filho Luis, de 40 anos. Nascida em Mombuca, a senhora com pouco mais de um metro e meio passou por algumas cidades do interior ao lado do já falecido marido, até que fixou morada em Capivari.

Quando a filha de Isabel se tornou mãe pela primeira vez, há 19 anos, a família vivia em Indaiatuba, mas Marisa trabalhava em São Paulo. “Todo final de semana eu voltava para a casa da minha mãe em Indaiatuba. Foram três anos assim. Eu era babá de uma das filhas da Mara Maravilha”, conta. Com o primeiro marido, teve quatro filhos: Daniela, 19, Adriano, 17, Caio, 16, e Leonardo, 14.

Depois, trabalhou 11 anos numa padaria. Ao separar-se do companheiro, mudou com Isabel para Salto e, na nova cidade, arrumou emprego como doméstica. “Daí o pessoal da padaria montou uma filial em Salto, e eu trabalhei com eles dois anos”, diz a mulher. Lá, foi morar com o segundo marido, com o qual teve mais quatro filhos: Ronaldo, 11, Carlinhos, 10, Tiago, 9 e Jesus, que vai completar 8 anos dia 16.

Isabel e Marisa vivem história real de superação (Foto: Laila Braghero/O Semanário)

Isabel e Marisa vivem história real de superação (Foto: Laila Braghero/O Semanário)

“A gente ficou um bom tempo junto, uns sete anos. Mas não deu certo, porque ele começou a bater em mim e nos meus filhos.” Na época, Marisa morava na Vila Izildinha, já em Capivari. Segundo ela, os inúmeros boletins de ocorrência nunca deram resultado. As agressões só pararam depois que os vizinhos, juntos, fizeram com que o homem pagasse na mesma moeda.

Após a separação, a filha de dona Isabel decidiu morar com a mãe. O ex-marido, recorda, pagou pensão por um breve período. “Mas aí a mãe dele morreu lá no Norte e ele foi pra lá dividir os bens. Naquele ano eu catava reciclagem com a minha mãe e o meu caçula tinha nove meses. Cadê que ele falou ‘toma uma caixa de leite pro nosso filho’?”

Passados dois anos, o ex-genro de Isabel voltou a dar as caras. “Eu estava fazendo faxina na casa da vizinha. Ele veio num sábado e levou as crianças para o bar. Daí eu fui lá, trouxe os meninos de volta, chamei a polícia e pedi a ele que nunca mais aparecesse na minha porta. Desde então, nunca mais veio. E nunca mais quis saber se as crianças estão vivas, se estão precisando de alguma coisa. Eu também não vou atrás. A consciência é dele”, dá de ombros.

Catadora de materiais recicláveis é a matriarca da família Gaion (Foto: Laila Braghero/O Semanário)

Catadora de materiais recicláveis é a matriarca da família Gaion (Foto: Laila Braghero/O Semanário)

Na terra do Leão da Sorocabana, mãe e filha passaram a sustentar a família por meio da venda de materiais reaproveitáveis. Começou com latinhas e logo já recolhiam de tudo. “O médico mandou minha mãe fazer caminhadas, e a pessoa com quem ela andava catava latinha na rua. Daí, minha mãe começou a catar também”, explica Marisa.

Em pouco menos de um ano, a auxiliar de produção parou de ajudar dona Isabel e foi trabalhar de doméstica. Dois anos depois, achou melhor tornar-se diarista, para ter mais tempo com os filhos: levá-los ao médico, à escola etc. Numa das casas, conheceu quem são hoje seus empregadores. “Eu fazia faxina para eles, até que me convidaram para trabalhar na fábrica que estou até agora – uma lavanderia de jeans –, faz três anos”, completa.

Enquanto isso, Isabel continuou nas ruas com seu carrinho, feito pelo vizinho, seu Valdemar. “Já é o terceiro.” Fazia sol ou chuva, a senhora enfrentava as longas subidas e descidas do bairro apanhando reciclagem. “Eu ia até lá pros lados do Chiarini. Às vezes ia meio nervosa, chorando, sozinha. Eu e Deus”, revela a catadora. Segundo ela, o carrinho feito de madeira, quando cheio, é pesado demais. “Jesus do céu.”

(Foto: Laila Braghero/O Semanário)

Em Capivari, mãe e filha começaram com latinhas e logo já recolhiam de tudo (Foto: Laila Braghero/O Semanário)

No entanto, há um ano a mulher deixou de ir tão longe. “Ela está meio adoentada”, conta Marisa. Hoje, dona Isabel passa recolhendo materiais recicláveis até num raio de, no máximo, 300 metros. Em compensação, os doadores fiéis levam o lixo reciclável até ela. “Tem um homem que traz bastante. Ele deixa aquela montoeira, sabe? Outra traz lá do Centro. É uma mulher com um ‘carrão’ chique.”

“Até de domingo ela sai pra pegar”, fala Marisa sobre a mãe. “Ela é evangélica. Domingo, eram umas sete horas da noite, tinha gente entregando reciclagem. Ela não sabia se ia à igreja ou se pegava a reciclagem. Então eu falei ‘vá à igreja, né! Eu pego pra você’.”

Mesmo levando uma vida digna, trabalhando intensamente para garantir comida na mesa e educação aos oito filhos de Marisa, há quem destile preconceito contra esta família. “O vizinho da frente disse que não faz festa na casa dele porque tem vergonha da gente. E a que morava aqui ao lado chamou a Vigilância Sanitária uma vez”, afirma a filha de Isabel.

(Foto: Laila Braghero/O Semanário)

Ronaldo ao lado da avó e da mãe (Foto: Laila Braghero/O Semanário)

De acordo com ela, a empresa que recolhe o material separado pela catadora passa a cada 15 dias. Com isso, o órgão fiscalizador “viu que é tudo bagunçado”. “Mas minha mãe não tem culpa. Além disso, não há nada aqui que possa servir de criadouro de bichos ou dengue. Ela cobre tudo com plástico e está sempre de olho”, assegura. E acrescenta que a vigilância constatou não haver nada errado.

Sobre o faturamento da mãe, Marisa diz que é insuficiente para abastecer a casa, a qual está em nome de Isabel e três tios. O setor de reciclagem, alega, está “bem desvalorizado”. Segundo a filha da catadora, as garrafas pet valem mais. O papelão é o mais barato: R$ 0,25 o quilo.

Por outro lado, dois dos filhos já ajudam a sustentar as 11 pessoas que vivem na casinha. Enquanto a mais velha, Daniela, trabalha numa loja de roupas, Adriano, de 17 anos, integra a equipe de produção de uma fábrica relacionada ao mesmo estabelecimento.

Guerreiras, as duas gerações estão diretamente envolvidas com a prática sustentável de reutilizar alguns itens – apenas lixo para a maioria – como matéria-prima para a fabricação de novos produtos. A iniciativa, embora recorrente nos dias de hoje, infelizmente não é a fonte de renda principal destas matriarcas, devido ao baixo preço pago pelos compradores maiores.

E, para completar, Marisa não recebe auxílio do governo federal. Ela cadastrou os filhos no programa Bolsa Família em 2007 e, em 2009, foi contemplada. Porém, um deles faltou muitas vezes à escola no ano passado, fazendo com que todos perdessem o direito ao benefício. “Há pouco tempo fui recadastrá-los, mas a moça disse que agora preciso esperar o encaixe. Eu recebia de cinco filhos. De três sempre ficou pendente, não sei por quê.”

Diagnosticada com 80% de trombose nas duas pernas em razão da quantidade de gravidezes e à genética, está recém-operada. Precisou marcar quatro vezes a operação para, enfim, se ver livre da doença. “Eu ia à Santa Casa de jejum e nada de fazerem a cirurgia. Agora, além dos 15 dias de repouso, o médico me deu uma carta para levar ao INSS, para que eu fique um pouco afastada, porque trabalho em pé, das 7h às 17h.”

Em clima de Copa do Mundo, Marisa lembra que há 12 anos entrou em trabalho de parto durante o jogo que consagrou o Brasil pentacampeão. “A partida acabaria às 11h. Eram 10h quando comecei a sentir contrações. Estava um tumulto que só. Em homenagem, optamos por colocar o nome do meu filho de Ronaldo”, destaca sorridente, chamando para a conversa o menino magro, cuja altura já passa a mãe. “Não é, Ronaldo?”

Quanto à essência da vida, a mãe de Marisa e avó de oito netos aconselha que, independentemente de qualquer coisa, as pessoas precisam ser mais alegres e ter paz no coração. Feliz por viver ao lado da “netaiada”, dona Isabel admite não saber ficar sem eles. “Quando não estão aí, a gente acha falta”, diz. “Se estou triste, vou chegando pertinho da criançada e já me alegro”. O que importa, para ela, é ter uma família unida. “Nesse mundo, todos temos que ser unidos, né?”, conclui a catadora.

(Foto: Laila Braghero/O Semanário)

Isabel sai todos os dias pela rua com seu carrinho, feito pelo vizinho, catando materiais recicláveis (Foto: Laila Braghero/O Semanário)

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Publicada na página 9 da edição 1150 do jornal O Semanário, em 9 de maio de 2014.

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