O ponto

Talvez Antônio morra amanhã. Talvez hoje. Ou depois de sua mulher, Maria. Mulata humilde, porém forte, guerreira e cheia de fé. Exímia dona de casa, não tira seu avental bordô, manchado pelo uso contínuo. O casal passou a vida inteira tentando construir um caminho feliz, mas o tempo é inimigo dos dois. De todos. Sempre foi. Há quem diga que é preciso se juntar a ele para não ser boicotado por suas aflições.

Naquele dia, Antônio se distraiu com uma joaninha pousada ao lado da rosa artificial da esposa, que há 20 anos embeleza a janela do pequeno quarto, poluída pelo tráfego. Percebe os pontinhos pretos combinando com os três pares de patinhas miúdas, bolinhas suaves no cardigan vermelho. Queria ser como ela: sem preocupações, dívidas para pagar e inúmeras obrigações a cumprir sem tempo para respirar.

Quarta-feira. Sentado no ponto de ônibus azul recém-construído, se pergunta por que o motorista do transporte público estava cinco minutos atrasado. Olha para o relógio e, quase sem querer, calcula a quantidade de carros que passa pela principal avenida da cidade por segundo: média de três. Ah, aquela famosa avenida por onde já transitaram tantos trabalhadores perdendo a hora, ou perdidos por ela.

O 543 aponta lá na esquina e Antônio vê. Com a malinha de couro na mão esquerda, herdada pelo pai, o homem baixo, moreno e de poucos cabelos se levanta e estica o braço direito para não correr o risco de ter de esperar a próxima condução, dali a 20 minutos. Pensa na mulher, que ficara em casa lavando roupas. Como ele a amava. Haviam construído uma família sólida: três filhos e um cachorro.

Ludibriado pelos pensamentos afetivos, não sentiu quando o Porsche preto e embriagado avançou o sinal às 6h05 e subiu a calçada do ponto sem hesitar. Acertou em cheio o pequeno sobrado de Antônio, e de Maria. Derrubou tudo o que ainda poderia ser criado ou pelo menos reformado pelos dois. Os sonhos ficaram estendidos na calçada, a dez metros dali. Ao desconhecido, que fugiu logo em seguida, nada aconteceu.

Talvez se Antônio tivesse parado para contemplar outras joaninhas, teria se atrasado mais e perdido o ônibus. Talvez se a rosa fosse de verdade e pedisse alguns minutos para ser regada, teria se atrasado mais e perdido o ônibus. Talvez se a vida não fosse tão ingrata. Talvez se o Porsche não estivesse descontrolado. Talvez se o ponto não tivesse sido construído, teria se atrasado mais e perdido o ônibus. Mas não teria perdido a vida.

_

Texto de ficção. Exercício de escrita rápida produzido para o curso de pós-graduação em Jornalismo Literário na EPL, em 13 de junho de 2015.

2 comentários

Deixe uma resposta