Ainda existe vida no Rio Capivari

Em meio a tanta intervenção humana, fauna e flora abundantes acompanham curso das águas que passam por nove cidades

Excesso de matéria orgânica aumenta a quantidade de aguapés no leito (Foto: Laila Braghero/O Semanário)

Excesso de matéria orgânica aumenta a quantidade de aguapés no leito (Foto: Laila Braghero/O Semanário)

Rio poluído, sem peixes ou qualquer vestígio de vida de alguma espécie. Não. Felizmente, (ainda) não estamos falando do Rio Capivari. Há exatos 24 dias do Dia Mundial da Água, celebrado anualmente em 22 de março, O Semanário percorreu um pequeno trecho do rio, desde o acesso pelo final da Rua Colonização, em Rafard, até a ponte que fica atrás da usina Raízen.

O objetivo? Observar a situação atual daquele que sobrevive em meio a tantas intervenções. E agora, somado a essa estranha alteração climática, o período de estiagem sofrido em grande parte do país, justamente numa época em que as chuvas não costumam dar trégua.

Às 9h de uma quarta-feira ensolarada, regados de protetor solar e repelente, fomos ao encontro do sargento do Corpo de Bombeiros Adelvan do Nascimento, do bombeiro municipal Sandro Alves e da coordenadora de educação ambiental Lorena de Quadros, da Diretoria de Meio Ambiente de Capivari. A ideia inicial era descer pelo menos 1% dos 212,6 quilômetros do Rio Capivari, entretanto isso não foi possível devido ao excesso de vegetação presente em seu leito. Mas essa não foi a primeira surpresa.

“Nossa, está fervilhando de filhotes de peixes”, exclamou Lorena assim que o bote entrou na água. O comentário dela resume a impressão das cinco pessoas a bordo. Além dos peixes, cágados, capivaras, pequenos mamíferos, garças e dezenas de outras espécies de aves compunham um cenário quase despoluído a olho nu, envolto de árvores, plantas e casas mal acabadas. Ribeirinhos corajosos, que sustentam a esperança de um dia não sofrerem mais com as enchentes.

Água apresenta coloração mais límpida do que o comum (Foto: Laila Braghero/O Semanário)

Água apresenta coloração mais límpida do que o comum (Foto: Laila Braghero/O Semanário)

O Rio Capivari, cuja nascente é em Jundiaí, próxima da Rodovia Engenheiro Constâncio Cintra (SP 360), passa pelas cidades de Louveira, Vinhedo, Valinhos, Campinas, Monte Mor, Elias Fausto, Capivari, Rafard e em seguida deságua no Rio Tietê, na cidade de mesmo nome. Ele nasce limpo, mas ao percorrer seu caminho sofre com a ação humana, que não só o polui depositando esgoto doméstico e industrial, como também destrói sua mata ciliar.

Mesmo com a ausência quase total de chuvas nos meses de janeiro e fevereiro, navegávamos inesperadamente por águas límpidas, muito diferente da situação encontrada em outras “visitas”, segundo Lorena. A bióloga explica que o normal seria nos depararmos com um rio de águas turvas, com odor forte e desagradável. Porém, o cenário presenciado, diz ela, pode se dar pelo aumento da concentração de nutrientes dissolvidos na água.

“Isso gera condições propícias para o crescimento da vegetação de várzea, criando abrigo e alimento para a fauna”, explica. “Nos dias anteriores ao passeio, choveu à montante, ou seja, nas cidades pelas quais ele passa antes de chegar até aqui. E isso deve ter aumentado o volume de água e diminuído, consequentemente, sua concentração”, detalha a coordenadora. Atualmente, o nível do Rio Capivari está oscilando entre um metro e um metro e dez centímetros. De acordo com a Defesa Civil, o nível normal é de 80 centímetros. “A profundidade do rio muda de tempos em tempos. Ele tem um canal principal, cuja fundura se mantém, mas as laterais vão sendo alteradas conforme a velocidade da água. Por exemplo, às vezes ela traz um pouco de areia para o lugar que era fundo, e este se torna raso”, explica o sargento.

Se fazia cinco minutos que ele havia ligado o motor, era muito. O caminho a nossa frente, assim que passamos embaixo da ponte que liga Capivari e Rafard, estava bloqueado por bambus. Impossível continuar. Imediatamente, Nascimento deu meia volta, e passamos, então, a descer o leito. A quantidade de lixo nas margens, desde sacolas plásticas e garrafas pet até marmitas e vaso sanitário era claramente notável. Mesmo assim, de acordo com Nascimento, o que vimos era quase nada se comparado com outras épocas. “É nesses ‘passeios’ que a gente vê um monte de coisa errada”, lamenta Lorena.

Tomados pela ingenuidade da natureza, do verde vivo e do vento, tão facilmente dominados e depredados cada dia mais pelo homem, algumas ideias para “salvar o mundo” começaram a surgir. Aproveitando a Semana da Água, os bombeiros acreditam que março é o mês ideal para se organizar uma espécie de “arrastão”, isto é, fazer a limpeza simbólica do rio com a ajuda da própria população.

Diversas espécies de pássaros puderam ser facilmente observadas ao longo do percurso (Foto: Túlio Darros/O Semanário)

Diversas espécies de pássaros puderam ser facilmente observadas ao longo do percurso (Foto: Túlio Darros/O Semanário)

“Para ir agilizando, os jornais impressos e as rádios poderiam cadastrar os barqueiros que possuem arrais (habilitação para manusear barcos)”, completa o sargento. “Eu queria fazer uma limpeza mesmo, mas o investimento é enorme”, ressalta a bióloga da Diretoria de Meio Ambiente. Entre um pitaco aqui e outro ali, chegamos à conclusão de que o ideal seria realizar um arrastão com quatro pessoas em cada barco, divulgar, chamar bastante gente, e depois expor todos os objetos recolhidos.

Enquanto isso não se torna realidade, continuamos nossa visitação. O quinteto já tinha notado uma vegetação cada vez mais constante, seguindo da beira em direção ao Centro, por cima do rio. Nada assustador, até que fomos mais uma vez impedidos de continuar o trajeto. O rio estava tomado de vegetação desde a ponte que fica atrás da usina até perder de vista. “Não podemos tentar passar, porque não sabemos qual é a profundidade ali. Pode acontecer de a hélice bater em alguma pedra. Essa vegetação é superficial, mas aquela tem raiz”, explica Nascimento, apontando os aguapés à frente e mais atrás outra espécie de vegetação de várzea, o capim fino, mais escuro.

Lorena explica que como estamos enfrentando um tempo muito seco, as plantas se proliferam devido ao acúmulo de matéria orgânica (que vem com o lixo), justamente a usada para fazer a fotossíntese. Ela serve de alimento para os peixes, mas quando se “fecha” torna-se prejudicial, pois impede a penetração da luz do sol na água. Mas esse “pepino” fica a cargo da natureza? Aí é que está. Segundo Lorena, não dá mais para deixar.

“Não dá tempo da natureza se decompor porque estamos sempre colocando mais poluentes.” Assim, o correto, detalha, é entrar em contato com a Companhia de Tecnologia de Saneamento Ambiental (Cetesb) e pedir autorização para fazer a limpeza do leito do Rio Capivari e remover as plantas prejudiciais. Mais do que isso: é preciso contratar uma empresa que realize o serviço, pois segundo Lorena, hoje a cidade não tem maquinário, nem pessoal capacitado para isso.

“Sobre o passo a passo dessa medida eu já não sei te falar, porque a gente nunca precisou fazer isso.” Foi aí que passou por nós um marmitex vazio, recém-utilizado. Seria cômico, se não fosse um desrespeito ao meio ambiente. “Nossa. Custa muito colocar no lixo?”, questiona Sandro Alves. Pior que isso são os esgotos clandestinos dos ribeirinhos, que notamos no caminho de volta. O cheiro se intensifica nesses pontos, mas pelo jeito não incomoda os próprios moradores.

(Laila Braghero/O Semanário)

Rio sobrevive em meio às edificações e intervenções do homem (Laila Braghero/O Semanário)

Quase ao fim do passeio, encontramos uma bela capivara, que mal nos deixou observá-la próxima das casinhas e de pronto mergulhou na água. Tentamos segui-la, contudo, seus anos-luz de esperteza fizeram com que desaparecesse nas profundezas do rio. “Apesar das agressões, a natureza encontrou uma maneira de sobreviver”, valoriza Nascimento.

É verdade, sargento. O que deveria ser motivo de orgulho, sobretudo dos rafardenses e capivarianos, pela abundância de água doce existente, pela fauna e flora abrigadas e, porque não dizer, pela beleza natural que sobrevive em meio a tantas edificações, passa despercebido, rejeitado. No entanto, o rio sobrevive às intervenções.

As pessoas constroem até o alicerce das casas dentro do rio. Mas vem a natureza e contorna a situação. Em 1985, um poeta da região escreveu um poema falando sobre esses mesmos problemas. Chorando o Rio Capivari lamentava o mau cheiro, a cor da água e o descaso da população. Clamava por uma atitude do poder público, que diz estar sempre em busca de novos recursos estaduais e federais para os mais variados fins.

Enquanto descíamos do bote, trazido pelos bombeiros à terra firme, a pergunta estampada nos rostos era: “Pois bem, e agora? Como fica o Rio Capivari? De um lado, as plantas e os bichos lutam para se conservar em seu habitat natural; do outro, o homem teima em querer saber mais e encher o rio com sua sujeira. Apesar do aparente desinteresse das autoridades pela fonte de vida, preferimos acreditar, assim como o poeta, que um dia ainda veremos as águas claras, e um Rio Capivari há de ressurgir.

_

Publicada na página 9 da edição 1141 do jornal O Semanário, em 7 de março de 2014.

Deixe uma resposta